“O tempo da peste é o da solidão forçada”, COVID-19 e o Real que nos ultrapassa

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*Fernanda Zacharewicz[i]

Sou mãe de duas meninas e estou a milhares de quilômetros de distância de ser uma mãe paciente. Mas, quando elas eram bem pequenas, naquela idade em que sabem as palavras, mas o vocabulário ainda reduzido não é suficiente para expressar as emoções que brotam quando a angústia invade, eu costumava agachar-me na altura delas, tocar-lhes os braços, sem abraçá-las e, assim, pertinho, olhos nos olhos, eu dizia: “Ponha em palavras, ponha em palavras que vai doer menos”.

Nos últimos tempos eu me encontrei em duas situações em que o Real foi tão invasivo que, atordoada, parecia que até meus sentidos estavam desfocados. E havia decisões importantes a serem tomadas. Decisões que influenciariam no andar da carruagem e que exigiam, em meio à névoa, pensar com clareza. Parecia impossível pôr em palavras tudo que então ocorria. Estaria eu errada sobre o que dizia às meninas?

E, nessa última semana, lá estava eu, de novo, na mesma situação de angústia com o crescimento em P.G. (progressão geométrica) do COVID-19. Puxa! Eu, desorganizada como sou, havia feito tudo certinho, dentro do cronograma. Era um milagre! E o teto desabou na cabeça. Tivemos que desmarcar eventos agendados há mais de um ano. A vontade que dá – e acho que muitos de vocês partilham do mesmo impulso – é de ligar o dane-se (e sim, sei que temos uma expressão melhor, mais vulgar e mais prazerosa que essa) e seguir a vida “como se não houvesse amanhã”. Como Delumeau, no clássico A história do medo no ocidente, escreve: “Era o carpe diem vivido com uma intensidade exacerbada pela iminência quase certa de um horrível trespasse”[ii]. Essa vontade, então, não é novidade, já é velha conhecida dos tempos das grandes pestes.

Mas vai haver amanhã. Amanhã: palavra que marca o tempo que faz pensar, planejar, executar o plano e seguir adiante. Vai haver amanhã e eu vou dar um jeito segundo o que está ao meu alcance, assim um futuro possível volta a ser vislumbrado, pois “Viver sem projeto não é humano”[iii].

Em uma dessas situações angustiantes, quando parecia não haver saída, eu repetia a mim mesma: “I’ll figure it out”. Obviamente que eu não dei um jeito em tudo, no máximo fiz uns remendos pelo caminho. Dessa vez, minha parte nessa costura é ficar em casa, atender os pacientes on-line, implementar o home office para toda a equipe editorial e seguir escrevendo. Assim passamos do horror de saber ao poder fazer com esse saber:

“As crônicas relativas às pestes ressaltam a frequente negligência das autoridades em tomar as medidas que a iminência do perigo impunha, sendo verdade contudo que, uma vez desencadeado o mecanismo de defesa, os meios de proteção foram aperfeiçoando-se no decorrer dos séculos”[iv].

No final das contas, carregaremos os profundos ferimentos adquiridos nessa nova guerra que iniciamos. Ainda hoje algo no cotidiano explode como mina terrestre e fazem antigos ferimentos voltarem a doer quando penso estar caminhando por um jardim florido.

As feridas se fazem ouvir, lembram a dor do acontecimento, mas lembram as batalhas já vencidas. Lembram que reconstruí não somente a partir de escombros; mas, com novos desenhos arquitetônicos, as atuais edificações têm outras cores, que melhor refletem a luz que sou capaz de apreciar.

Assim é quando se percebe e pode-se olhar de frente, bem perto, a angústia que nos invade e ousamos colocá-la em palavras. Nada é mais assustador para o sujeito do que seu próprio mundo interno. “Constata-se então, no tempo e no espaço, uma espécie de unanimidade na recusa de palavras vistas como tabus. Evitava-se pronunciá-las”[v]. É sempre sozinho que cada sujeito tem que se haver com isso.

“Cortados do resto do mundo, os habitantes afastam-se uns dos outros no próprio interior da cidade maldita, temendo contaminar-se mutuamente. Evita-se abrir as janelas das casas e descer à rua. […] O tempo da peste é o da solidão forçada”[vi].

Só, mas com alguns outros. Os vídeos das vozes que cantam nas sacadas dos prédios italianos, as redes sociais que nos aproximam dos amigos que estão junto conosco, compartilhando os mesmos valores. Que as tecnologias de 2020 não nos deixem tão sozinhos neste momento, que possamos compartilhar a experiência e a coragem de tentar pôr em palavras esse Real que nos ultrapassa. Só, cada um em sua casa, mas com alguns outros. Mais do que Escola, assim se faz humanidade.

[1] Fernanda Zacharewicz é psicanalista, doutora em Psicologia Social pela PUC/SP e editora da Aller.

[1] DELUMEAU, J. História do medo no Ocidente 1330-1800: uma cidade sitiada. Tradução: Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 186

[1] Ibid, p. 182.

[1] Ibid, p. 170.

[1] Ibid, p. 172.

crédito foto: Décio Figueiredo