Práticas religiosas e ambiente de trabalho: como isso influencia na saúde mental do colaborador?

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Relatório da Unesco mostra que religiões de matriz africana são as mais atingidas por casos de intolerância religiosa

Os casos de intolerância religiosa não cessam no Brasil. O número de denúncias no país aumentou 106% entre 2021 e 2022, e a maior parte foi feita por praticantes de religiões de matriz africana, como umbanda e candomblé. Seis em cada dez vítimas são mulheres.

II Relatório Sobre Intolerância Religiosa: Brasil, América Latina e Caribe, da Unesco, traz, entre seus dados e informações, alguns casos de intolerância divulgados pela imprensa nos últimos anos e, entre eles, diversos que aconteceram especificamente no ambiente de trabalho. Entre os casos relatados, não faltam situações vexatórias impostas pelo empregador ou colegas de trabalho contra colaboradores.

“Em geral, o fazer religioso vai se concentrar em ambientes específicos, como templos, igrejas, sinagogas, mesquitas, terreiros e assim por diante, mas ele também tem lugar em nossa vida cotidiana, não só pelos acessórios, como pelas roupas e outros códigos”, explica a psicanalista e CEO do Ipefem (Instituto de Pesquisa de Estudos do Feminino e das Existências Múltiplas), Ana Tomazelli. A especialista conta que as questões relacionadas à religião e trabalho são muito mais profundas do que parecem.

“O que eu percebo que está ocorrendo no mercado de trabalho é: existe uma reprodução neste microambiente – que é local de trabalho – do que a gente entrega no macroambiente. Se você é colaborador ou prestador de serviço e for aderente ou dialogar com a religião do empregador, isso não é um problema. Não são incomuns locais de trabalho com imagens cristãs ou uma bíblia, afinal o Brasil é um país marcado pela colonização religiosa de base católica, ou que contam com alguns rituais como orações pela manhã, sem que haja uma preocupação em perguntar se alguém ali é de alguma outra religião ou crença”, ressalta Ana.

“Porém, se esse alinhamento não existe, mas o empregado faz parte de uma religião que não encontra nenhum preconceito direto, a relação também tende a ser tranquila, que é o que eu tenho visto em mais de 20 anos de mercado. Agora, quando falamos principalmente de uma prática que enfrenta preconceitos, sobretudo entre pessoas que professam religiões de matriz africana e religiões afro-brasileiras, as coisas mudam de figura, e podem ser violentas do ponto de vista emocional”.

Segundo a psicanalista, a questão da diversidade nas empresas esbarra fortemente na questão religiosa também. “Eu defendo a teoria de que os programas de diversidade nas empresas não vão ter o sucesso e a efetividade que poderiam ter, enquanto a conversa sobre religiões e seus dogmas, no trabalho, também não encontrarem espaço”.

E qual seria a forma mais adequada de equilibrar essas relações? “Acho que a primeira reflexão importante é entender que o ambiente de fazer religioso é o seu corpo, é a sua vida. E, na convivência coletiva, é necessário partir do princípio da moderação dos espaços. Não é todo mundo que vai querer conversar sobre esse assunto, não é todo mundo que vai poder ouvir o que você tem a dizer, independentemente da sua religião, mas acho que aqui tem um ponto importante, que é: a sua religião é para você ou você parte da premissa de que tem a missão de converter as pessoas ou convencê-las de algo?”.

Segundo explica a especialista, o ambiente de trabalho não vai ser o lugar da conversão, porque a finalidade e o propósito que une essas pessoas neste ambiente não é um propósito religioso por essência, por natureza e, portanto não é o lugar que tem essa função. Porém, por outro lado, o colaborador não pode ser submetido a situações vexatórias pelo uso de roupas, acessórios – como guias, por exemplo, ou por alguma prática que não interfira no andamento do trabalho e só diga respeito ao próprio colaborador.

“Em nenhum momento usar um acessório é um risco, por exemplo. Isso esbarra no que as empresas faziam muito frequentemente, quando pediam para as pessoas negras cortarem o cabelo, dizendo que era sobre higiene. Então, não tem como falar sobre o uso ou não de artefatos religiosos como acessórios ou vestimentas sem esbarrar no racismo, e, portanto, no que diz respeito à diversidade. Eu nunca vi ninguém questionar um Japamala ou um Terço. Mas vejo a proibição de usar Guias, o tempo todo.”.

Impactos na saúde mental

A psicanalista explica como a questão da religião no ambiente de trabalho pode impactar na saúde mental do colaborador. “As pessoas de quem eu cuido e que são as mais atravessadas pela angústia, são também pessoas atravessadas, em sua vida em geral, por regras religiosas como um aprisionamento. Por isso, novamente, eu bato na tecla de que os problemas de diversidade em empresas não vão para frente se a gente não conversar sobre religião”, pontua.

“Estar com o seu símbolo religioso no trabalho, desde que não parta do princípio da conversão, na medida em que não tenta impor nada, na medida em que não atravesso inclusive o direito do outro em não querer falar sobre o assunto, na medida em que esse fazer religioso é meu, para além dos princípios de risco e higiene, é um direito assegurado pela Constituição”, explica a psicanalista.

Ana ressalta também que é preciso abandonar a ideia de que política, futebol e religião não se discutem. “Religião é algo sobre o qual precisamos conversar sim, sobretudo sobre as manifestações e os efeitos na família e no trabalho. No entanto, nesses temas que são mais sensíveis, as conversas acabam adquirindo um outro tom. Muitas vezes as pessoas não querem de fato conversar, e sim convencer de que elas estão certas, que o que elas estão falando é o melhor, de que elas escolheram a melhor denominação religiosa, mas não só isso. Elas querem convencer que a do outro é errada, é pior, que é demoníaca, e assim por diante. Então parte de um princípio de controle do corpo do outro, do pensamento do outro, da decisão do outro, e, dentro dessa lógica, realmente a conversa não avança, e tem desdobramentos para a saúde mental”.

É preciso lembrar que intolerância religiosa é crime, previsto no Código Penal, e que a liberdade religiosa é assegurada pelo art. 5º da Constituição Federal. “Essa mudança é uma mudança lenta e dolorida. Então tem um espaço que vai exigir a nossa adaptação, e tem um espaço para que possamos provocar as conversas. Caso isso não ocorra, continuaremos tendo a hegemonia das chamadas “religiões mundiais” (as religiões monoteístas do Ocidente) e, sem assumir que não existem somente elas, nada vai mudar e nem melhorar. O racismo e a violência continuarão. Por isso, existem perguntas bem centrais que podem ser aplicadas para o empregador: o que ele ganha proibindo símbolos religiosos? E como ele pode combinar o jogo com todo mundo, para que todos os limites sejam respeitados?”, conclui Ana Tomazelli.

Ipefem
Fundado em 2019, o Instituto de Pesquisa de Estudos do Feminino e das Existências Múltiplas – Ipefem atua em três pilares, que podem acontecer coordenadamente ou individualmente: pesquisa, educação e terapia. Em Pesquisas, considera-se todas as modalidades técnicas de pesquisa que considerem recortes por gênero, orientação sexual e saúde mental. Em Educação, o instituto tem a Comunidade Ipê, uma plataforma de educação à distância, baseada em Lifelong Learning, dedicada a aulas expositivas e micro conteúdos de impacto. Em Terapia, o instituto já atendeu milhares de pessoas, oferecendo apoio terapêutico individual ou em grupo, podendo ser atendimentos gratuitos ou com valores simbólicos acessíveis. Saiba mais: https://ipefem.org.br/

Ana Tomazelli, psicanalista e CEO do Ipefem (Instituto de Pesquisas & Estudos do Feminino e das Existências Múltiplas), uma ONG de educação em saúde mental para mulheres no mercado de trabalho. Mentora de Carreiras, Executiva em Recursos Humanos, por mais de 20 anos, liderou reestruturações de RH dentro e fora do país. Com passagens pelas startups Scooto e B2Mamy, além de empresas tradicionais e consolidadas como UHG-Amil, Solera Holdings, KPMG e DASA (Diagnósticos da América S/A). Mestranda em Ciência da Religião pela PUC-SP e membro do grupo de pesquisa RELAPSO (Religião, Laço Social e Psicanálise) da Universidade de São Paulo, também é pós-graduada em Recursos Humanos pela FIA-USP e em Negócios pelo IBMEC-RJ. Formada em Jornalismo pela Laureate – Anhembi Morumbi.

Linkedin/anatomazellibr
Instagram @ipefem

Imagem: Unsplash